quinta-feira, 13 de março de 2008

O Doutor, o Coveiro e o Indigente.


Foi um ano terrível pros vivente do Tabulero (Qualquer humilde cidade rural do nosso inconsciente coletivo). Não se basta às secas de maio que acabaram com a roça, mal chego setembro e dá-lhe descambar chuva. E que chuva. Morreu planta, morreu bicho e pior - morreu gente. Apesar da mortandade tinha morrido que não queria assumi sua morte morrida. Complicou? Eu explico.

O Tabulero é um desses sertões escondidos da vida. Local de gente honesta, gente boa, gente de crédito. A cidade não é lá grande coisa, mas as coisas que lá existem são de grande respeito. Entre elas esta o coveiro José, homem que como ninguém sabe sobre nossa finitude e transitoriedade - ainda que nunca tenha ouvido sobre nenhuma destas palavras. O coveiro José mora no cemitério. E a isto deve ao médico que também é prefeito e já foi na capital um dia juiz de direito. Bom, a questão é que o doutor prefeito confia em José, por que José nunca duvidou do sujeito.

Vida de coveiro até que é tranqüila. José nunca passou aperto. Contava até sete e era o que bastava. Sete palmos... (um, dois, três...). Não eram seis, nem oito, eram sete. Cavava sete profundos palmos da terra arenosa de Tabulero, deitava no leito da cova o defunto, depois esperava o lamurio, o amém das beatas, e por fim, a última flor da coroa. Minutos depois restituía a terra até criar um “montinho”, voltando pra casa e aguardava. Na expectativa fúnebre do próximo visitante desalmado.

O Doutor prefeito, que era médico, fora juiz e nas horas vagas Professor era homem bom e competente. Todos o admiravam. Sua palavra era uma bíblia e seu discurso uma profecia.
Quando dizia, se podia acreditar. Ninguém duvidava. Ele sabia. Era estudado. Conhecia.
Falava palavras lindas, ainda que pouco compreendidas. Conjuntura, pressuposto, discrepância, letargia - Não importava o significado. Se ele pronunciara tinha sentido e era o que valia. Discordar de um homem desses, realmente seria pedir pra “morrer”. Bem... Pelo menos isso (morte) o Coveiro José conhecia.
Do acontecimento, voltemos à chuva, que não contente em vir sozinha, trouxe com ela um alguém que ninguém soube de onde. O Doutor prefeito, verificou o caso. Disse que o alguém era um “indigente” e que fora encontrado afogado no arroio de baixo. Como não havia quem se reclame o corpo, o Doutor prefeito despachou o defunto, que por seus cálculos já estava morto a mais de hora. Preencheu o atestado de óbito e mandou José enterrar. Para o coveiro
José o atestado de óbito era uma espécie de salvo conduto pro céu. Ele ouvira falar que lá pras bandas da capital um coveiro tinha enterrado gente viva, gente que não morreu só dormia. Como saber se alguém realmente está morto? O Dr. Prefeito sabia. E com o atestado de um homem que é prefeito, médico, professor e juiz, quem podia? Nem o vigário, Deus me perdoe, pode com ele.
Atestado na mão, pedido acertado, projeto elaborado. A chuva estiou e a pá trabalhou. Buraco escavado. O coveiro José acomoda o esquife no fundo da cova, se prepara para volver a terra, quando de repente... HÁÁÁAÁÁ HÁÁÁÁÁÁ... José pulou pra traz, enquanto o desencarnado continuava a berrar de dentro de seu cubículo de madeira. O que fazer? Como agir? Nunca José tinha enfrentado tantos dilemas:
_ Será que é voz do além, meu Deus? Uma aparição? “Algum” sinal?!?... Eu prometo minha santa senhora: não bebo mais... Nem um golinho. Ainda que eu ache que um golinho de cachaça as “veis”, não é lá grande pecado... Vê só o coroinha do vigário, ele...
José o coveiro continuava ali, com o queixo apoiado no cabo da pá, olhando pra dentro da cova, enquanto o funesto indivíduo berrava exaustivamente. Vários pensamentos passavam na cabeça do Coveiro José, mas nenhum ia de encontro ao veredicto de óbito do Dr. prefeito.
_ Imagine se o doutor ia me manda um vivo pra enterrar, logo ele. Eu até vi quando ele colocou aquele troço no ouvido, pra de ouvi a morte no defunto. Aparelho engraçado. Coisa de gente sabida. E doutor sabe. Se ele disse que o “morto morreu” quem sou eu pra duvidar... Doutor, é doutor, estudou pra isto. Lembro de ter ouvido fofoca de que foi até pros estrangeiro. E eu...bom...
Na cabeça do coveiro José, se alguma coisa estava errada, a culpa seria dele mesmo. Quem sabe não tinha medido bem os sete palmos, quem sabe eram só seis e meio e o defunto era meio exigente? Como quem disse se:
_ Sete é sete, não me enrole.
José mediu, e em meio a berros vindo do caixão, confirmou: eram realmente sete. Qual o problema então? Pensou. Pensou. Depois de alguns instantes, tomados por um espírito aristotélico, cogitou consigo mesmo:
_Pobre e solitário desgraçado, sem flores, sem lamento, sem beata e seus améns. Não deve ser fácil morrer assim sozinho, sem ninguém pra lhe cortejar. Podre homem, miserável. Dizem que o homem no se da conta que é homem na morte. Tudo bem, mas não precisava ser assim, de forma tão lamentável - desumano. É por isso que o pobre coitado moribundo ta assim tão angustiado.
Mas graças a Deus e ao Doutor Prefeito o coveiro José estava ali para resolver a questão. Ele acabaria com aquela horrível sina, a sina de um homem que se chamava Indigente e que morto, não queria assumir sua morte morrida, por falta de gestos de humanidade.
José fez a coisa certa. Diante de gemidos insistentes, leu o atestado de óbito pro morto, ressaltando que havia sido assinado, por ninguém menos do que, o próprio prefeito, que também era médico, e... , e..., e..., e tinha ido pro estrangeiro. Ressaltou que ninguém nem mesmo ele, em estado de alma penada poderia contestar.
Tudo ficaria bem. Saiu. Pegou umas flores de Jaguatirão, umas velas que haviam sobrado do dia de finados, pôs uma gravata e voltou pro sepulcro. Ali, improvisou uma cerimônia, com o que lembrava de todas as cerimônias fúnebres que havia presenciado. Como não sabia se o Senhor Indigente era católico ou protestante, rezou um pai nosso e salpicou de “aleluias”. Depois pronunciou algumas tenras palavras: _ Deus o tenha. Acabou o sofrimento é hora de descansar. Aceite o Senhor Está numa melhor...
Foi realmente uma cerimônia única e emocionante, dizem até que o coveiro chorou. Quanto ao Senhor, Indigente, parece que gostou, pois de dentro do esquife se podiam ouvir seus soluços, ao que parece, soluço de um conformado. Diante disto José o se mostrou entusiasmado. Certamente o morto havia aceitado a realidade, é como se disse: Está consumado, a ti entrego o meu espírito. Por fim, em meio a expressões mutuas, o coveiro José restituiu os sete palmos de terra, cartesianamente contados, sobre o caixão daquele, que com ele, havia passado momentos tão distintos.
Desta maneira se silenciou o Senhor Indigente. Um homem bom, como todo o bom morto. Que morreu por que o Doutor disse que morreu; Morreu por que o coveiro disse que o Doutor disse que morreu; Morreu por que acordou tarde e quando se deu conta, viu que sua expressão de vida, tinha menos credito do que uma simples assinatura.


Lembre-se:
Enquanto olharmos o mundo, com olhares de coveiro, achando que a ciência esta acima da própria vida e de seus mistérios, os indigentes, aqueles sem nome ou expressão, continuarão a ser enterrados vivos no cemitério da vida.

Texto escrito por: Uma Ovelha.

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